Artigo: Presença indígena no sudeste goiano

Povos Indígenas que habitaram Catalão e a região Sudeste do Estado de Goiás: Uma breve revisão histórica e cultural

Foto 1: Palheiro de Reunião Tapuia do Carretão - crédito: Haroldo Resende

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Introdução

A história dos povos indígenas no Brasil é marcada por uma rica tapeçaria de culturas, resistência e adaptação às profundas mudanças trazidas pela colonização europeia. No contexto do estado de Goiás, especialmente na região sudeste e no município de Catalão, a presença indígena se revela tanto em sua história quanto em seus impactos culturais contemporâneos. Este artigo tem como objetivo explorar a presença histórica dos povos indígenas nesta área, destacando suas interações com o processo colonizador e a resiliência de suas tradições.


História Pré-Colonial

Antes da chegada dos colonizadores, a região sudeste de Goiás, que inclui Catalão, era habitada por diversos grupos indígenas. Entre eles, destacam-se os Kayapó (ou Caiapó ou a autodenominação Mẽbengôkre), seminômades que praticavam agricultura e caça. Os Guaiás (ou Goyazes, ou Guayazes), que deram nome ao estado, também faziam parte do mosaico cultural desta área. No entanto, a documentação histórica sobre essa última população é escassa, refletindo o apagamento cultural imposto pelo processo colonizador.

Como os relatos são escassos e imprecisos e muitas vezes feitos com a ajuda de outros povos que atuavam nas expedições, como os Tupi-Guarani eram comuns também erros de identificação. Há indícios de que grande parte dos povos que hoje habitam além do Rio Araguaia e o sul do Tocantins também estiveram no sul e sudeste goiano, como os Avá-Canoeiros, conhecidos por sua habilidade na navegação fluvial e resistência ao contato externo, Xavantes, Panará, Timbira, entre outros.


A Chegada dos Colonizadores e Seus Impactos

Com a chegada dos bandeirantes no século XVIII, em busca de ouro e terras para exploração, iniciou-se um período de conflito e deslocamento para os povos indígenas. Entre os grupos mais notáveis pela resistência e hostilidade estavam os Kayapó. Este grupo, também conhecido pelos Tupi como Ubirajara ou Ibirajara, era reconhecido pelos cronistas como "Bu, Bilreiro, Caceteiro". Encontrados entre o Rio Paraná e as cabeceiras do Paraguai, os Kayapó enfrentaram os sertanistas e, em uma tentativa de fuga, migraram para o sul de Goiás, onde sofreram ataques dos Boróro, aliados dos colonizadores. Os sobreviventes buscaram refúgio nas imediações da então Vila Boa, atual Goiás (Goiás Velho, ou Cidade de Goiás), mas a presença Kayapó em Goiás hoje é quase inexistente, devido à migração para Mato Grosso ou ao extermínio (1).

No caso dos Kayapó, ou Mẽbengôkre, estes definem-se como 'aqueles da água grande', refletindo sua conexão com os rios Tocantins e Araguaia. Com uma organização social baseada em subgrupos como Mekrãgnoti e Xikrin, este povo tem uma tradição oral rica e uma história de resistência e luta pelos direitos territoriais que culminou em influências significativas nas políticas indígenas no Brasil. A interação com a sociedade envolvente trouxe tanto desafios quanto oportunidades, moldando a cultura Kayapó através do tempo, que persiste em manter suas tradições, linguagem e práticas culturais como forma de resistência e identidade (2).

Convém citar também que a experiência dos Panará, ou Krenakore, é um testemunho da violência e das mudanças forçadas impostas aos povos indígenas pela colonização e pela exploração econômica. Contatados em 1973 durante a construção da rodovia BR-163, os Panará sofreram uma drástica redução populacional devido a doenças e confrontos. Foram deslocados de suas terras tradicionais, que se estendiam até partes do que hoje é o sudeste de Goiás, para o Parque Indígena do Xingu. A luta persistente dos Panará pelo retorno às suas terras resultou na recuperação de parte de seu território ancestral, um processo que começou em 1994 e foi concluído com a homologação da Terra Indígena Panará em 2001. Este caso reflete a complexidade das relações entre os povos indígenas, o Estado e as políticas de desenvolvimento no Brasil, especialmente no contexto goiano (3).


A Bandeira do Anhanguera e seu Impacto sobre os Povos Indígenas

A expedição de Bartolomeu Bueno da Silva, o Anhanguera, em 1722, marcou profundamente a região sudeste de Goiás, incluindo Catalão. Cruzando o rio Paranaíba, esta bandeira não só buscava ouro mas também promovia a catequese, deixando cruzes no sertão como símbolos de orientação e domínio territorial. A interação com os indígenas, notadamente os Goyazes, foi marcada por episódios de intimidação para a revelação de minas de ouro, o que caracterizou Anhanguera como o 'diabo velho'. Esta expedição foi o prelúdio para a fundação de vários arraiais que se transformariam em centros urbanos de Goiás, alterando o mapa demográfico e cultural do estado. A cruz fincada por Anhanguera em Catalão, mais tarde transferida, simboliza essa herança histórica, refletindo o impacto duradouro da colonização sobre as comunidades indígenas (4).

O sudoeste de Goiás, durante o período de 1830 a 1900, foi um território de fronteira onde se deu a colonização do 'Sertão do Gentio Cayapó'. Este processo, conforme descrito por Rafael da Silva Oliveira, foi marcado por conflitos entre os colonizadores e os indígenas Cayapó, que resistiram à invasão de seus territórios ancestrais. A colonização nesta área não foi apenas uma expansão territorial mas também uma tentativa de pacificação e integração forçada dos povos nativos através de estratégias como a catequese, a fundação de fazendas e a construção de infraestrutura. Tal colonização resultou em uma perda significativa de terras e autonomia cultural para os Cayapó, ilustrando um capítulo da história goiana onde a presença indígena foi sistematicamente suprimida ou alterada pela influência colonial (5).

O estudo 'Os aldeamentos indígenas no Caminho dos Goiases: guerra e etnogênese no sertão do Gentio Cayapó' oferece uma visão detalhada sobre como a colonização portuguesa no século XVIII e XIX, especificamente no sudoeste de Goiás, transformou a vida dos povos indígenas. Os aldeamentos, neste contexto, não foram apenas núcleos de controle e catequese, mas também cenários de guerra e resistência. A narrativa de conflito e etnogênese apresentada no estudo sublinha como os Cayapó, entre outros grupos, enfrentaram desafios imensos à sua autonomia e cultura, resultando em uma complexa dinâmica de adaptação, resistência e formação de novas identidades étnicas no que era conhecido como o Sertão da Farinha Podre. Este processo teve implicações duradouras para os povos indígenas da região, incluindo aqueles nas áreas do sudeste goiano (6).


Presença Indígena em Outros Municípios do Sudeste Goiano

Além de Catalão, outros municípios do sudeste goiano carregam vestígios de uma presença indígena histórica:

  • Pires do Rio e Santa Cruz de Goiás têm indícios de que foram habitados por grupos como os Caiapó antes da colonização, embora não haja registros de comunidades ativas nestas áreas.
  • Em Caldas Novas, acredita-se que indígenas, possivelmente os Goyazes ou Caiapó, utilizavam as fontes termais antes da chegada dos colonizadores.
  • Ipameri, Bela Vista de Goiás, Orizona, Urutaí, Cristianópolis e Vianópolis também possuem uma história pré-colonial que sugere a presença de indígenas, embora a documentação específica seja limitada. Esses municípios refletem uma história comum de deslocamento e integração forçada das populações nativas durante o processo de colonização.


Aldeamentos e Integração Forçada

Os Kayapó do sul de Goiás foram particularmente ativos em seus confrontos com os colonizadores no século XVIII, até serem confinados pelos aldeamentos estabelecidos, como o D. Maria I. Posteriormente, foram transferidos para São José de Mossâmedes, em uma tentativa de controle e integração cultural forçada que caracterizou boa parte da política colonial em relação aos povos indígenas.

Estudos históricos, como o de Chaim (1983), que analisam os aldeamentos indígenas em Goiás entre 1749 e 1811, revelam a complexidade do processo de integração e controle exercido pelos colonizadores. Esses aldeamentos, muitas vezes administrados pela Igreja ou pelo Estado, não só alteraram a geografia humana da região mas também impuseram uma nova ordem social, econômica e cultural sobre os povos nativos. A adaptação forçada a práticas agrícolas, a catequese e o abandono de tradições ancestrais foram elementos centrais desse processo, resultando em um significativo impacto demográfico e cultural sobre os povos da região sudeste de Goiás, incluindo aquelas próximas a Catalão (1).


A Colonização e o Papel da Igreja

A colonização portuguesa, como descrito em alguns estudos urbanísticos, utilizou a Igreja Católica não apenas como uma ferramenta de evangelização mas também como um meio de controle territorial e cultural. Esse processo de urbanização e domínio religioso implicava, por extensão, a subjugação das populações indígenas às novas leis e costumes, frequentemente envolvendo a doação de terras para a construção de igrejas como forma de estabelecer presença e autoridade. A abordagem portuguesa, que contrastava com a espanhola por ser mais adaptável ao terreno e às condições locais, ainda assim tinha como fim a dominação cultural e territorial das terras e seus habitantes originais, impactando profundamente as culturas indígenas na região sudeste de Goiás (7).


Presença Indígena Contemporânea: As Famílias Xavante, Crianças e Educação

Atualmente, embora não haja comunidades indígenas estabelecidas em Catalão, a presença de estudantes indígenas, especialmente da etnia Xavante, na Universidade Federal de Goiás, traz uma dimensão contemporânea à questão indígena. Os Xavante, um povo com uma forte tradição de coletividade, frequentemente migram em grupos familiares para estudar, incluindo cônjuges, filhos e outros parentes próximos. Esta prática não só mantém a estrutura familiar unida mas também gera desafios e oportunidades educacionais.

As crianças Xavante que acompanham seus familiares necessitam de acesso à educação básica. Para atender a essa demanda, a rede pública de ensino contrata professores indígenas intérpretes, que também trazem suas famílias, fomentando assim um ambiente de aprendizado que busca valorizar e preservar a língua e a cultura Xavante. Os programas educacionais públicos para crianças Xavante e indígenas em geral, em Goiás, podem incluir aulas na língua materna, educação bilíngue e atividades culturais que refletem a cosmovisão e os valores destes povos. A integração de práticas tradicionais como a música, a dança, e a arte Xavante no currículo escolar não só enriquece a experiência educacional mas também fortalece a identidade cultural das novas gerações. 

Foto 2: Lideranças indígenas goianas em encontro educacional na cidade de Aruanã (10) - crédito: Haroldo Resende


Considerações Finais

A história dos povos indígenas em Catalão e no sudeste de Goiás é um testemunho da resiliência cultural e da complexidade das interações entre colonizadores e nativos. A falta de registros detalhados sobre os primeiros habitantes da região nos lembra da importância de resgatar e valorizar a memória cultural indígena. A presença contemporânea de estudantes indígenas e a necessidade de políticas educacionais inclusivas demonstram que, embora transformada, a influência e a cultura dos povos originários continuam a moldar o tecido social e cultural desta parte do Brasil.

Recentemente, foi divulgado pelo IBGE que Goiás é o estado com o maior número de indígenas em áreas urbanas do país, um dado que reflete a migração e a adaptação dos povos indígenas ao ambiente urbano (8). Segundo o chefe substituto da Funai em Goiânia, Haroldo Resende, esta presença é um indicativo da resiliência e da busca por melhores condições de vida, educação e saúde. Em entrevista ao Jornal Opção, o servidor da Funai, ressaltou que esta urbanização não significa a perda da identidade cultural, mas sim uma nova fase de adaptação onde a tradição se encontra com a modernidade. Ele enfatiza a importância de políticas que respeitem e valorizem a diversidade cultural indígena, garantindo inclusão e respeito aos direitos dessas populações (9).

Este fenômeno contemporâneo de urbanização indígena em Goiás pode ser visto como uma continuidade histórica de adaptação e resistência, onde os povos nativos continuam a lutar pela preservação de sua identidade cultural em um mundo em constante mudança.


Referências bibliográficas

(1) Livro: Chain, Marivone Matos. Aldeamentos indígenas: Goiás, 1749-1811, 2 ed. São Paulo. 1983. Disponível em: https://etnolinguistica.wdfiles.com/local--files/biblio%3Achaim-1983-aldeamentos/Chaim_1983_AldeamentosIndigenas_Goias1749_1811.pdf, acesso em 21/01/25.

(2) Artigo: Mẽbengôkre Kayapó; Instituto Sócioambiental - ISA;   Povos Indígenas do Brasil. Disponível em:  https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Meb%C3%AAng%C3%B4kre_(Kayap%C3%B3), acesso em 21/01/25.

(3)  Artigo: Panará; Instituto Sócioambiental - ISA;   Povos Indígenas do Brasil. Disponível em: https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Panar%C3%A1, acesso em 21/01/25.

(4) Notícia: 300 anos da Bandeira do Anhanguera; ZapCatalão. Disponível em:  https://www.zapcatalao.com.br/300-anos-da-bandeira-do-anhanguera/, acesso em 21/01/25.

(5) Artigo: Júnior, Rafael Alves Pinto. O sudoeste de Goiás como território de fronteira: a colonizaçãodo Certão do Gentio Cayapó (1830-1900). Rev. Hist. UEG-Anápolis, v.4, n.2, p.37-61, ago. /dez. 2015. Disponível em: https://www.revista.ueg.br/index.php/revistahistoria/article/view/4210/3037, acesso em 21/01/25.

(6) Dissertação: MORI, Robert. Os aldeamentos indígenas no Caminho dos Goiases: guerra e etnogênese no sertão do Gentio Cayapó (Sertão da Farinha Podre) séculos XVIII e XIX. 2015. 232 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Humanas) - Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2015. DOI. Disponível em: https://doi.org/10.14393/ufu.di.2015.314, acesso em 21/01/25.

(7) Artigo: Elane Ribeiro Peixoto; Pedro P. Palazzo; Maria Fernanda Derntl; Ricardo Trevisan; (orgs.) Tempos e Escalas da Cidade e do Urbanismo. XIII Seminário de História da Cidade e do Urbanismo . Brasília: Editora FAU–UnB, 2014. ISBN 978-85-60762-19-4. Disponível em: https://shcu2014.com.br/territ%C3%B3rio/415.html#:~:text=Maria%20I%20trazem%20uma%20arboriza%C3%A7%C3%A3o,v%C3%AA%20a%20fachada%20da%20igreja, acesso em 21/01/25.

(8) Notícia: BRASIL. Agência IBGE Notícias. Censo 2022: mais da metade da população indígena vive nas cidades. Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/42277-censo-2022-mais-da-metade-da-populacao-indigena-vive-nas-cidades#:~:text=Entre%202010%20e%202022%2C%20a,pa%C3%ADs%20aumentou%2088%2C96%25.&text=Os%20maiores%20percentuais%20de%20ind%C3%ADgenas%20residindo%20em%20%C3%A1reas%20urbanas%20em,Federal%20(91%2C84%25)., acesso em 21/01/25.

(9) Notícia: Jornal Opção. Goiás é o estado com mais indígenas em área urbana do país, diz IBGE; chefe da Funai explica. Disponível em: https://www.jornalopcao.com.br/ultimas-noticias/goias-e-o-estado-com-mais-indigenas-em-area-urbana-do-pais-diz-ibge-chefe-da-funai-explica-666289/, acesso em 21/01/25.

(10) Notícia. BRASIL. Fundação Nacional dos Povos Indígenas - Funai. Com apoio da Funai, educadores de Goiás participam de formação para qualificar ensino e valorizar cultura indígena nas escolas. Disponível em: https://www.gov.br/funai/pt-br/assuntos/noticias/2024/com-apoio-da-funai-educadores-de-goias-participam-de-formacao-para-qualificar-ensino-e-valorizar-cultura-indigena-nas-escolas, acesso em 21/01/25.

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